segunda-feira, janeiro 02, 2012

Figuras do Porto (e arredores) - Padeira de Avintes

A Padeira de Avintes, do Album de Costumes Portuguezes, edição das Livrarias Aillaud e Bertrand(Paris/Lisboa) com texto de Ramalho Ortigão na ortografia original.



A PADEIRA DE AVINTES
A mulher representada n'esta pagina é conhecida em toda a cidade do Porto e seu termo pela designação genérica de Padeira de Avintes - o que não obsta a que de ordinário ella não seja, nem de Avintes nem Padeira. Prudente aviso á precipitação d'aquelles, que pelo simples aspecto social e pittoresco de seu semelhante, tão ousadamente se abalançam a determinar-lhe o sexo, a profissão e a naturalidade!
Aquella - se assim ouso exprimir-me - padeira, e - porque assim o digamos - de Avintes, habita a margem esquerda do rio Douro, na sua zona mais desafogada da angustia das fragas, mais verdejante e risonha, não prefixamente em Avintes, mas em qualquer ponto da borda d'agua desde o Areiinho até o ribeiro d'Arnellas.Vem á cidade, onde umas vezes vende carne de porco, outras vezes os famosos biscoitos de tosta, morenos e estalejantes, bem conhecidos nos chás pacatos das reuniões familiares e das assembléas recreativas, ou a brôa já de milho branco, já de pão de mistura, cuja grossa côdea lourejante, esquadraçada em manchas de escumalho cor de mel, scintilla ao sol como polvilhada de ambar.Na sua aldeia ribeirinha ella sacha e monda a horta, espadela e fia, bota a teia, engorda o porco, deita a gallinha, forneia, e faz barreia.
Mas, propriamente de profissão, barqueira é que ella é.
O seu bote, meio de carga, meio de passageiros, escuro, comprido, de baldaquino á popa como as gondolas do Rialto, é por ella remado em pé, com a longa pá, sem forquilha onde jogue sem estorvo que a sujeite ao pau do tolete, tão pesada, tão difficil de manejar! rio acima, rio abaixo, da banda de cá para a banda d'além, cantando o Belleisão, cantando o Ribeirinho, n'uma toada lenta e aguda, de uma saudosa expressão embaladora, em que o doce e frio mysterio das aguas correntes parece evolar-se melodicamente da profundidade do rio para a concavidade do céo.Os que vão dos Guindaes, da Ribeira, de Massarellos ou de Miragaya, jantar ao domingo em família, e em festa «pelo rio acima» a Quebrantões, ao Freixo, á quinta da Oliveira, preferem para a excursão fluvial, ao bote correcto e banal dos barqueiros de Gaya, o pittoresco, o vetusto, o festival pangaio da Padeira de Avintes, mordido pelo sol, despintado pelo tempo, aqui e alli descosido e descalafetado nas juntas do cavername, de toldo de linho em remendos, com a flamula em bico, de panninho vermelho, tre­mulando alegremente na ponta de uma vara de pinho.A recordação da patuscadinha campestre, da fritura e da salada comida na relva á sombra dos cas­tanheiros, entre o rumor da agua e o gorgeio dos ninhos, fica para sempre alliada na memória á silueta robusta e sadia da esbelta remadora, de cujo aspecto parece vir para nós, n'um ridente effluvio bucolico, a sensação dos fenos percorridos, dos morangaes atravessados n´uma tarde de verão, com o carreiro da alfazema atravez do quinteiro, o pôço ornado de craveiros e de manjaricos, as garrafas lacradas de verde refrescando na agua de bica, os vestidos de musselina, os ramalhetes de papoulas e de espigas de trigo, a alface ripada em jovial collaboração em torno da saladeira em ramagens, e os viveres que saem do cesto novo para a toalha desdobrada no chão, sob um picante e appetitoso aroma de rega, de cuentros e de cebolinho novo.
Ramalho Ortigão


Fonte: Agostinho Barbosa Pereira in "Coisas que se escrevem"

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